Cooperativa de costureiras dá vida a maior cadeia solidária do algodão

“As mulheres conseguem olhar o seu empreendimento do ponto de vista econômico, mas conseguem, de modo muito especial, cuidar também do seu meio, da comunidade. Isso deixa marcas profundas”, disse Nelsa Nespoldo, presidenta da Cooperativa Central Justa Trama, uma cooperativa que congrega centenas de trabalhadoras e trabalhadores nas cinco regiões do Brasil. A Cooperativa Central Justa Trama é filiada à Unisol Brasil, uma das centrais que compõem a Unicopas (União Nacional das Organizações Cooperativas Solidárias).

Ela que vem de uma família de pequenos agricultores de Nova Pádua, hoje emancipada de Flores da Cunha, no interior Rio Grande do Sul, foi uma das protagonistas na trajetória da cooperativa que mostrou que é possível produzir com responsabilidade e justiça social, princípios colocados, de fato, em prática quando o assunto é cooperativismo e economia solidária.

Casada e mãe de um casal de filhos, Nelsa iniciou sua jornada ainda jovem quando decidiu sair de casa para trabalhar na cidade. “Não tinha como os sete filhos ficarem na propriedade dos meus pais. Três foram para a cidade e quatro continuaram na agricultura, sendo que três continuam com os meus pais produzindo uva, cebola, alho, tomate”. Nelsa começou com limpeza em escolas, depois servindo em restaurantes até que um dia conheceu e ingressou em um movimento de jovens da Igreja Católica. De lá para cá a militância não parou mais. De 1983 a 1986 foi coordenadora do movimento, viajou Brasil afora, morou em São Paulo e em Fortaleza levando a bandeira das juventudes por onde passava. “Não importa onde estivéssemos, o compromisso era conscientizar outros jovens. Se estivesse no bairro, a luta era pelas melhorias das condições do bairro, se estivesse em fábricas, comércios, a luta era por melhorias nas condições de trabalho”, relembra.

Depois de um ano morando em Fortaleza, já casada, ela e seu marido se estabeleceram em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Lá, Nelsa foi trabalhar em uma fábrica de alimentos e começou a atuar na luta das mulheres na Federação Nacional da Alimentação. Mas, já com os dois filhos pequenos, foi demitida. “Me aproximei mais dos meus filhos, passei a me envolver mais nas questões do bairro onde morava e comecei a costurar por conta própria em casa mesmo”. Na época ela se integrou em um movimento popular comunitário e foi dada a ela a oportunidade de ser a representante da comunidade para, junto com o governo, decidir em quais ações deveriam ser aplicados os recursos públicos. “Na vida, por tudo que já andei e conheço, essa, talvez, tenha sido a minha melhor experiência. A mais radicalizada participação direta e de decisão democrática em que o povo, de fato, decidia onde deveriam ser as prioridades de aplicação dos recursos públicos”.

Em 1996, período em que já se falava em economia solidária no Brasil e algumas experiências vinham surgindo, Nelsa, uma vizinha e uma assistente social sentiram a necessidade de que algo fosse feito para as mulheres daquele bairro. Foi aí que elas tiveram a ideia: podemos juntar outras costureiras e costurar para um grande hospital estadual que fica localizado na mesma região da comunidade. “Foi aí que eu comecei a me entrosar com o tema do cooperativismo. Não foi uma opção por entender o que era o cooperativismo, mas como nós fomos procurar o hospital para propor essa produção, eles nos disseram que teríamos de ser uma cooperativa ou uma associação. Associação já tinha deixado uma marca na comunidade de pouca seriedade com recursos públicos. Então, pensar no cooperativismo, mesmo que a gente não dominasse o tema, nos dava algo do entendimento de cooperar, de se ajudar e era isso que a gente estava buscando”. Nascia ali a Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos, a UNIVENS, como foco prioritário na geração de renda para a comunidade por meio do trabalho coletivo.

Quase 10 anos depois, em 2005, a UNIVENS já contava com espaço e maquinário próprios e por meio de um intercâmbio internacional conheceram a possibilidade de juntar cooperativas de diferentes áreas para formar cadeias de produção. No Fórum Social Mundial daquele ano elas foram as responsáveis pela produção de 50 mil sacolas que envolveu uma rede de 45 empreendimentos econômicos solidários de todo o Brasil. “Foi assim que vimos que era possível sim construir e tocar uma cadeia de economia solidária e a Justa Trama surgiu dessa compreensão de que, de fato, o coletivo é importante. Se hoje fossemos definir qual o valor mais importante desse tipo de economia é o de aprender a trabalhar de forma coletiva, desde o processo de produção a comercialização e de dividir igualitariamente todos os ganhos”.

A Cooperativa Central Justa Trama, sonhada sobretudo por mulheres, é a maior cadeia produtiva no segmento de confecção da economia solidária, articulando 600 cooperados e associados, em cinco estados: Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Ceará e Rondônia. O processo, que se inicia no plantio do algodão agroecológico, vai até a comercialização de diferentes peças, como: roupas, brinquedos, colares e jogos de cama.

“Podemos definir regras, valores e trabalhar de forma coletiva em que todo mundo ganha. Discutimos juntos o valor de cada etapa da produção, também dividimos os balanços no final do ano e as sobras de forma igual entre todos. Desta forma, a gente acredita que estamos enfrentando dois grandes problemas: a distribuição de renda, porque estamos fazendo uma justa distribuição de renda onde não há exploração de um sobre o outro, dividindo os ganhos de forma justa entre todos. Por exemplo, hora de trabalho de Rondônia vale o mesmo tanto da hora de trabalho no Rio Grande do Sul e é isso que nos faz definir os valores de cada peça. E a questão do meio ambiente, trabalhamos de forma agroecológica. O cooperativismo significa vida, significa princípios. Não é mais só uma questão de geração de renda. É um modelo que estamos escolhendo para a nossa vida. É maravilhoso pensar que amanhã estaremos seguros, dependendo só de nós e não dependendo de um patrão que resolve trocar a mão-de-obra ou discorda de alguma atitude que eu tenha tido e, por isso, me demita. No cooperativismo só dependemos de nós. O cooperativismo e a economia solidária significam olhar para a frente e acreditar que, de fato, um outro mundo é possível”, destacou Nelsa.

Um mundo reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) que, em um dos estudos realizados para o enfretamento da pobreza na América Latina, em especial, em plantações de algodão da Bolívia, da Colômbia e do Paraguai, elegeu a Justa Trama como a melhor metodologia para o enfrentamento da pobreza, muito por trabalhar temas relacionados à mulher, a inclusão e ao desenvolvimento sustentável. A experiência foi sistematizada pela agência da ONU na série ‘Estudos sobre a cadeia de valor do algodão na América Latina e no Caribe’ – Tramando e transformando: Justa Trama, a cadeia solidária do algodão agroecológico.